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Anacorese (Parte III)


Dom Mateus de Salles Penteado, OSB
 

 

ANACORESE (Parte III)

A Anacorese monástica (continuação)

2. Do século VI ao século XII

Já vimos anteriormente que a anacorese espiritual (separação afetiva do mundo, ou seja, da mentalidade e dos costumes mundanos), deve ser praticada por todos os discípulos de Jesus Cristo e que a anacorese monástica (separação efetiva ou física do mundo), instituída unanimemente pelos pais do monaquismo cristão, sinaliza a permanente incompatibilidade entre a Igreja e “este mundo”. Agora daremos sequência à rápida síntese histórica, abordando desta vez a anacorese monástica na Idade Média, até o século XII.

Alguém poderia objetar que o retiro do mundo não constitui uma prática essencial à vida monástica, visto que os monges foram os principais evangelizadores da Europa ao longo da Alta Idade Média (séculos V ao XI). De fato, em 1964, reconhecendo o mérito dessa gigantesca obra missionária, o Papa Beato Paulo VI declarou São Bento Padroeiro da Europa. Assim, diante da constatação de que os monges foram grandes missionários e que, além disso, a obra evangelizadora é obrigação de todos os batizados, sem exceção, não seria, então, incorreto considerar a anacorese física como inerente à vocação monástica? Não resta dúvida de que todos os cristãos são convocados a anunciar o Evangelho e que os monges e monjas nunca deixaram de fazer isso ao longo dos séculos. Entretanto, é preciso lembrar que existem muitas formas de evangelização e que Jesus Cristo é anunciado de maneiras diferentes, conforme o estado de vida de cada um.

No ano 569 a Itália foi invadida pelos bárbaros lombardos (ou longobardos), que devastaram muitas igrejas e mosteiros, incluindo Monte Cassino, fundado por São Bento, que foi destruído em 577. Os monges conseguiram fugir para Roma, onde foram acolhidos pelo Papa Pelágio II, que os mandou para o Mosteiro de São Pancrácio, perto do Latrão. Todavia, uma vez dentro dos muros da cidade, os monges perderam rapidamente suas raízes beneditinas, que eram de caráter mais contemplativo, e o mosteiro logo se transformou em uma comunidade de cônegos. Realmente, como informa um importante estudioso da história monástica, Dom Gregorio Penco, OSB, o ambiente romano permaneceu por muito tempo indiferente à Regra de São Bento por causa do caráter urbano e basilical dos mosteiros romanos. Apesar disso, São Gregório Magno, um nobre romano que foi eleito papa em 590, teve contato de primeira mão com alguns dos monges que conheceram São Bento pessoalmente e que haviam se refugiado na cidade. Desse modo, quando escreveu os quatro Livros dos Diálogos, em 593, dedicou todo o Livro II à vida de São Bento, fazendo também um elogio à sua Regra, “notável pela sabedoria e muito clara em sua linguagem” (Diálogos II,36). No momento, porém, de enviar missionários à Inglaterra para evangelizar os bárbaros anglo-saxões que desde 428 haviam invadido a região – e possivelmente também para “romanizar” as comunidades cristãs remanescentes, formadas por bretões (a oeste) e por escotos (ao norte) –, São Gregório preferiu recorrer ao Mosteiro de Santo André, no Monte Celio (uma das “sete colinas” romanas), comunidade que ele mesmo havia fundado e da qual era membro quando foi escolhido para o sumo pontificado. Inicialmente foram enviados o monge Agostinho e quarenta companheiros, que no ano 597 desembarcaram na ilha de Thanet, perto da foz do rio Tâmisa, fundando em seguida o Mosteiro de São Pedro e São Paulo em Canterbury, capital do Reino de Kent. Contudo, não devemos imaginar que os monges desse mosteiro e dos demais que foram sendo sucessivamente fundados pelos monges romanos se dedicassem todos à “pastoral” no sentido moderno e pós-tridentino da palavra, deixando de lado a vida escondida e silenciosa do claustro. Ao contrário: um monge inglês típico, São Beda, o Venerável († 735), homem de vasta erudição, saiu da clausura de seu mosteiro apenas três vezes, para breves viagens, ao longo de mais de cinquenta anos de vida monástica. A evangelização na Inglaterra foi realizada principalmente pela irradiação litúrgica e cultural dos mosteiros e por obra de monges elevados ao episcopado, a começar pelo próprio Santo Agostinho, ordenado bispo em 601 e logo nomeado arcebispo de Canterbury. Nessa condição, ele criou mais duas dioceses, Londres e Rochester. Faleceu em 605.

Antes do final do século VII os sete reinos da Heptarquia (que formavam a Inglaterra anglo-saxã) haviam se convertido ao cristianismo, possibilitando também a fundação de mosteiros por parte de monges de origem irlandesa. Como sabemos, uma das formas mais características da anacorese praticada pelos irlandeses era a “xeniteia”, o exílio voluntário da pátria, a peregrinação por causa de Cristo. Conforme escreve Dom Jean Leclercq, OSB – um especialista no monaquismo medieval –, “partir queria dizer ir em busca de solidão, bem como enfrentar os perigos e fadigas de uma longa viagem, durante a qual jejuns e vigílias acentuavam o caráter penoso: era o meio de cumprir uma penitência imposta ou voluntária. Não por acaso, difundiu-se o uso de cópias do Evangelho em 'edições de bolso', que podiam ser facilmente carregadas em viagem”. Ora, muitos monges ingleses foram influenciados pelos irlandeses e sentiam-se igualmente atraídos pela “xeniteia”. Assim, cerca de um século depois de serem evangelizados, os anglo-saxões partiram, eles mesmos, para terras de missão, sobretudo junto aos povos germânicos. Destacam-se grandes nomes, como São Vilfrido († 709), que, tendo ingressado em um mosteiro de origem irlandesa (Lindisfarne), foi o primeiro a penetrar na Frísia, na atual Holanda, em 678 (posteriormente nomeado bispo de York); São Vilibrordo († 739), que, formado na tradição irlandesa, foi o verdadeiro apóstolo da Frísia; São Bonifácio, bispo e mártir († 754), evangelizador da Germânia, onde fundou numerosos mosteiros; São Vilibaldo († 787), que iniciou a restauração de Monte Cassino antes de se dirigir à Germânia. Mais uma vez, não devemos pensar que esses mosteiros missionários tenham deixado de lado a anacorese monástica. Efetivamente, descrevendo Fulda, sua principal fundação na Germânia, diz São Bonifácio: “Há um lugar selvagem em um deserto de solidão absoluta, no meio das nações de nossa pregação, em que construímos um mosteiro, estabelecemos monges que vivem sob a Regra do Santo Pai Bento, homens de estrita abstinência, sem comer carne nem beber vinho, contentes em trabalhar com suas próprias mãos” (Carta 86).

Enquanto isso, os visigodos invasores da Península Ibérica se converteram do arianismo ao catolicismo (589), em grande parte por obra de um monge e bispo, São Leandro de Sevilha († cerca de 600). Seu irmão, Santo Isidoro de Sevilha († 636), um dos maiores intelectuais de seu tempo, escreveu: “Como diz Jó, o asno silvestre despreza a cidade, e os monges, o trato frequente com os cidadãos que vivem no século” (Sentenças III,17,5).

No século IX, São Bento de Aniano († 822) empreendeu uma reforma monástica no reino franco que foi determinante para a imposição da Regra de São Bento como única regra monástica do Ocidente cristão. A observância da clausura tornou-se mais rígida, sem, no entanto, nunca se tornar absoluta ao longo de toda a Idade Média, com poucas exceções, mesmo nos mosteiros femininos, supondo-se uma liberdade regida pelo bom senso no tocante aos contatos com o mundo exterior. Aos poucos, porém, foi sendo elaborada uma legislação cada vez mais rigorosa para as monjas. A partir do século XII, por determinação dos bispos e dos sínodos, estendeu-se o costume das grades instaladas nos parlatórios e no coro, separando as monjas dos visitantes – norma nem sempre acolhida de boa vontade: as monjas de Yerres, por exemplo, arrancaram e jogaram no rio as grades que haviam sido colocadas por ordem do bispo de Paris. Não obstante, o uso das grades continua sendo, ainda em nossos dias, um eloquente sinal do valor espiritual da anacorese naquelas comunidades que as conservam.

Institucionalmente influenciada pela reforma de Bento de Aniano, foi fundada em 909 a Abadia de Cluny, que teve enorme sucesso por ter sido governada por uma sucessão de abades santos (e longevos), e também por ter se livrado da ingerência dos poderes leigos e mesmo dos bispos nas questões internas da comunidade (como a eleição do abade). Cluny tornou-se famosa não apenas pela liturgia, mas também pelo apoio que deu ao papa na obra da reforma da Igreja e na luta contra a intromissão de imperadores e reis nos assuntos exclusivamente eclesiásticos.

No século XI ocorreu um amplo movimento de revitalização da vida monástica, com forte acento na pobreza, na sobriedade litúrgica, no trabalho manual e, é claro, na anacorese – a própria vida eremítica, um tanto esquecida no Ocidente, foi revalorizada.  Nesse contexto São Romualdo († 1027) fundou a Ordem Camaldulense, com monges cenobitas e eremitas (e mesmo reclusos, que nunca deixam suas celas), e São João Gualberto († 1073) fundou Valumbrosa. Em 1098 foi fundado o Mosteiro de Cîteaux, origem da Ordem Cisterciense, que teve grande êxito. São Bruno († 1101) deu início à Cartuxa, unindo elementos do cenobitismo à vida acentuadamente solitária.

A partir do século XII a Europa passou por grandes transformações socioculturais com o final das invasões bárbaras, a retomada da vida urbana e do comércio regular, a criação das universidades e o fortalecimento do poder central. O monaquismo, porém, entrou em decadência, principalmente por conta da ingerência do poder civil nas comunidades – muitas delas não podiam sequer eleger seus abades, cargo que era ocupado por um leigo, o abade comendatário. Com isso, a prática da anacorese também foi afetada pelo relaxamento, assim como todas as demais observâncias monásticas. Nos séculos seguintes diversos movimentos de reforma foram fundamentais para a recuperação do fervor e da vitalidade da vida monástica e da vivência da anacorese, como veremos no próximo no artigo Anacorese (Parte IV).